Mobilidade nas Smart Cities: há que ir além das tecnologias de informação

De acordo com as estimativas da ONU, em menos de 30 anos, dois em cada três habitantes do planeta irão viver numa área urbana, sendo a mobilidade urbana responsável por uma parte relevante do total de emissões do transporte rodoviário.

Por:  Pedro Santos, Coordenador do núcleo de planeamento de transportes, e José M. Viegas, Presidente do Conselho de Administração da TISpt, consultores em Transportes, Inovação e Sistemas, S.A.
 

De acordo com as estimativas da ONU, em menos de 30 anos, dois em cada três habitantes do planeta irão viver numa área urbana, sendo a mobilidade urbana responsável por uma parte relevante do total de emissões do transporte rodoviário.

Neste contexto, planear uma Smart City, que disponibilize soluções de mobilidade eficazes e que assegure um acesso equitativo às oportunidades económicas e sociais em segurança, constitui uma das mais relevantes preocupações em todo o mundo.

O caminho para a redução das emissões na mobilidade pode envolver três vetores: melhorar (o desempenho energético e ambiental de cada modo); reduzir (a mobilidade motorizada); transferir (para modos de transporte mais sustentáveis).

 O vetor “melhorar” está no domínio da ciência e tecnologia, sendo a capacidade de intervenção das cidades limitada, para além da adoção de tecnologias mais limpas.
 

No que diz respeito ao “reduzir”, as cidades deverão assumir um papel mais interventivo e orientador das políticas urbanísticas, ainda que este vetor seja o que levará mais tempo a produzir efeitos. Estas políticas devem promover a densificação e diversificação funcional dos núcleos urbanos, reduzindo a necessidade de mobilidade motorizada, substituindo-a por mobilidade em modos suaves (em linha com a Lei de Bases do Clima, recentemente publicada [1]). Neste domínio a componente smart deverá definir regras e incentivos que levem os agentes económicos a fazerem investimentos imobiliários e a implantação de atividades alinhados com essas políticas.

Assim, será ao nível do vetor “transferir” que se concentrará a maioria das ações das cidades que visam a redução das emissões. Neste vetor, a informação é crucial, como a análise das soluções mais comuns a nível internacional demonstra:

  • MaaS – solução assente na utilização de uma plataforma que integra vários serviços de mobilidade, simplificando o planeamento das deslocações e o pagamento das mesmas;
  • Gamificação – soluções de planeamento de deslocações que premeiam a redução da utilização do transporte individual, ou a opção por modos mais sustentáveis (através de descontos no comércio local ou atribuindo prémios pontuais, por exemplo);
  • Soluções inteligentes de gestão de trânsito – mais centradas nos utilizadores do transporte individual, mas que podem beneficiar outros agentes, passando pela gestão semafórica centralizada ou outros sistemas de sinalização com transmissão de mensagens aos condutores, informação sobre capacidade de estacionamento, etc.;
  • Sistemas de informação sobre transporte coletivo – focados na informação em tempo real para utilizadores, permitindo escolhas ajustadas a cada momento;
  • Mobilidade partilhada – soluções de partilha de bicicletas, trotinetas e carros, com um papel importante na transferência para os modos ativos e na diminuição da posse dos veículos.

Contudo, este é o domínio em que é mais difícil conseguir mudanças de comportamento com a escala necessária. A inércia comportamental decorre, em boa medida, do mau ajuste das alternativas às situações da maioria das deslocações em automóvel privado [2]. De facto, o dia-a-dia dos cidadãos é cada vez menos padronizável [3], sendo enorme a variedade de situações e preferências pessoais.

O leque de soluções mais sustentáveis tem de ser bem mais vasto do que o atualmente disponível, e os estímulos à adoção de uma mesma solução terão de ser bastante diferenciados face ao conjunto dos cidadãos.

O leque de soluções mais sustentáveis tem de ser bem mais vasto do que o atualmente disponível, e os estímulos à adoção de uma mesma solução terão de ser bastante diferenciados face ao conjunto dos cidadãos.

Estamos perante um problema de enorme segmentação do mercado, em que a simples promoção do transporte coletivo a preço reduzido não irá resolver os problemas. É a este nível que é necessário adotar a perspetiva smart, mobilizando os instrumentos sofisticados já disponíveis para conhecer melhor os hábitos, preferências e restrições dos cidadãos que se deslocam em automóvel privado. Uma vez mais, o foco está na informação – em processos de adesão voluntária face às imposições do RGPD – procurando, em seguida, a definição de novos tipos de serviço, ou novas combinações de serviços já existentes, que representem propostas de valor apelativas. Só assim poderão estes cidadãos considerar alguma dessas ofertas interessantes e até aceitar experimentá-las. O objetivo é que alguns destes, mesmo que aos poucos, mudem de comportamento no sentido pretendido.

Tradicionalmente, a gestão da procura nos transportes é feita adotando três tipos genéricos de medidas: as que forçam alterações (push – empurrar), as que promovem alterações (pull – atrair), e as mistas. Invariavelmente, as medidas que forçam alterações são aplicadas ao transporte individual e, por isso, frequentemente evitadas pela maioria dos responsáveis políticos.

Neste enquadramento, também para combater a pressão social dos que não mudam, é necessário ser smart. A resistência dessa maioria não será vencida com ataques frontais, sendo essencial uma abordagem segmentada e outro estilo de argumentação e comunicação.

As argumentações têm de ser desenvolvidas de forma a questionar esses cidadãos sobre as suas opções (e não tentar convencê-los de que estão errados), abrindo a discussão a cada um dos vários segmentos da sociedade, sempre com ênfase na consciencialização da importância de adotar modos mais sustentáveis desde a idade escolar, sem uma atitude doutrinal.

Em síntese, para que as cidades possam ser smart na abordagem à mobilidade, os instrumentos a utilizar vão muito além da promoção de veículos elétricos e das apps de geolocalização. É indispensável formular os problemas a partir das escolhas atuais para, então, tentar usar a tecnologia e a psicologia comportamental para entender os fatores de resistência à mudança e definir os atributos das novas ofertas que possam induzir a mudança.

Dentro desta temática, a TIS participou recentemente em projetos de investigação e inovação H2020, que procuraram identificar soluções para melhorar a acessibilidade, a inclusão e a equidade – projeto Hi-Reach – e discutir a proposta de valor da mobilidade, analisando a forma como as pessoas justificam as escolhas em função do tempo de viagem – projeto Motiv. Pela experiência adquirida neste e em múltiplos domínios, a TIS está em excelente posição para apoiar as cidades que se sintam motivadas a avançar, a desenvolver e a aprofundar este tipo de abordagem.

Referências:

[1] https://files.dre.pt/1s/2021/12/25300/0000500032.pdf

[2] Para agravar ainda mais esta realidade, a pandemia acabou por contribuir para exaltar as virtudes do transporte individual, tendo aquela, no caso de Portugal, ocorrido justamente na altura em que, por via da integração e redução tarifária, a utilização do transporte coletivo nas áreas metropolitanas estava a crescer a bom ritmo, e em que as novas concessões rodoviárias, a iniciar em breve, contemplam níveis de oferta bastante mais atrativos.

[3] De acordo com o Inquérito à Mobilidade nas Áreas Metropolitanas do Porto e de Lisboa, de 2017, os denominados “motivos obrigatórios” (trabalho e escola) representavam, na AML, apenas 41,3% do total de viagens e, na AMP, apenas 39,9%.

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