Autocarros da Carris nunca andaram tão devagar em Lisboa.

A velocidade da Carris bateu em 2024 um recorde negativo e o trânsito é o grande obstáculo. A solução pode passar por expandir a rede de corredores BUS e dar prioridade nos semáforos ao transporte público.

É um testemunho comum de grande parte dos lisboetas: verem os seus autocarros atrasados. Ou, já dentro do autocarro, ficarem parados no trânsito atrás de uma fila de automóveis. Mas nunca terá acontecido tanto como agora: é que a velocidade comercial dos autocarros (e elétricos) da Carris, na cidade de Lisboa, está há três anos a bater mínimos históricos. Nunca foi tão baixa, nunca andaram tão devagar. E o assunto até já faz parte dos programas eleitorais para as próximas legislativas de 18 de maio.

Com cada vez mais automóveis a circular na Grande Lisboa – já superavam em 2023 valores pré pandemia – os autocarros e elétricos da Carris veem-se presos no trânsito constante das principais ruas da cidade e, por vezes, por situações de estacionamento abusivo.

Em 2024, a velocidade média dos autocarros foi de 13,7 quilómetros por hora, e a dos elétricos ainda mais baixa – de 8,4 quilómetros por hora. Na cidade do Porto, a velocidade dos autocarros da STCP também desceu, mas é superior à de Lisboa, atingindo 15,2 quilómetros por hora em 2024.

Desde que este indicador é recolhido, em 2004, nunca tinham sido registados valores tão baixos como estes, em declínio há três anos consecutivos.

 

Autocarros presos atrás de carros

Em permanente competição com o trânsito automóvel, os atrasos e a falta de fiabilidade do transporte público podem dever-se à falta de corredores dedicados – conhecidos por vias BUS.

Em 2017, o Inquérito à Mobilidade realizado pelo Instituto Nacional de Estatística e as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto revelava: cada carro transporta, em média, 1,61 passageiros.

Os números não deixam esconder a injustiça das filas de trânsito em Lisboa – os autocarros da Carris ficam presos atrás de automóveis a circular muitas vezes com apenas um ocupante, apesar de consigam competir em capacidade (cada um, leva até 155 passageiros, no caso de veículos articulados, ou cerca de 80 passageiros, no caso dos autocarros standard).

Avenida da Liberdade, com o corredor BUS desimpedido, à direita, demonstrando a importância da existência de corredores BUS para permitir a circulação eficiente e a fiabilidade dos transportes públicos. Foto: Inês Leote

Apesar do recente aumento da circulação automóvel e da perda de velocidade nos transportes públicos, Lisboa tem metas que apontam para a redução da utilização do carro e para uma maior importância do transporte coletivo: até 2030, a Câmara Municipal de Lisboa quer que o peso das deslocações feitas com automóvel alcance os 34%, uma descida de 26% na utilização do carro, que em 2017 representava 46% do total de deslocações dentro da cidade.

O que pode ser feito para inverter o ciclo de deterioração do serviço de transporte público? Pode uma aposta nos corredores BUS ser a solução?

A rede rodoviária da cidade de Lisboa tem cerca de mil quilómetros, dos quais apenas 75 km contam com corredores BUS – cerca de 7%. Em Barcelona, a percentagem da rede viária – cerca de 1360 quilómetros – com corredores BUS sobe para os 16%, com 222 quilómetros de corredores dedicados ao transporte público.

Quando se consideram as ruas por onde andam os autocarros da Carris, verifica-se que apenas 10% da rede contempla vias dedicadas ao transporte público. No mapa da atual rede, são visíveis várias descontinuidades nas ligações entre corredores BUS e em ruas importantes da cidade.

Corredores BUS Lisboa mapa vias
Rede atual de corredores BUS, com cerca de 75 quilómetros. Fonte: CML

A rede não tem crescido e inclusive tem perdido metros, como é o caso da Rua da Junqueira em Belém – exemplo de um lugar onde o carro tem prioridade face ao transporte público.

Mas há intervenções na rede viária que ajudam a resolver injustiças e ineficiências na circulação de transportes coletivos. Se no metropolitano ou na rede de comboios não há engarrafamentos, já que circulam numa via dedicada, o mesmo pode acontecer nas ruas e estradas da cidade.

Para além de ser pouca a oferta de corredores BUS na cidade de Lisboa, estes estão condicionados por outras características que dificultam o seu eficiente funcionamento – é comum encontrar veículos que ocupam estas vias para operações de cargas e descargas e, em vários casos, existe a possibilidade do restante trânsito utilizar estas vias para realizar viragens à direita. Em algumas paragens de transportes públicos da cidade, é ainda comum a ocorrência de acumulações de autocarros e elétricos durante vários minutos, causada por demoras nas operações de tomada e largada de passageiros.

Acumulação de autocarros e elétricos na freguesia de Belém, com demora prolongada na operação de tomada e largada de passageiros. Vídeo: Frederico Raposo

Quando conjugados, estes e outros fatores resultam na perda de velocidade comercial dos autocarros e elétricos da Carris.

“Tratar bem” os corredores BUS da cidade para cuidar do acesso aos autocarros

O aumento das vias reservadas a transportes públicos pode ser a solução, mas não basta: é preciso que as vias BUS estejam desimpedidas de obstáculos e favoreçam o transporte público em relação ao transporte individual.

Os cruzamentos com semáforos que não dão prioridade à passagem ao transporte público, por exemplo, são outro fator a contribuir para o atraso dos autocarros. Por isso, uma solução apresentada pelo Departamento de Transportes do Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC) é a da priorização automática dos transportes públicos em interseções.

O que quer isto dizer? Nas interseções com semáforos, a via reservada a autocarros pode contar com o seu próprio semáforo, permitindo circulação exclusiva aos transportes públicos através do prolongamento do seu sinal verde, ou até mesmo da criação de um momento de luz verde exclusivo para os transportes públicos, avança o LNEC. Esta última medida permitia autorizar aos autocarros mudanças de direção proibidas aos restantes veículos.

Fernando Nunes da Silva, engenheiro, especialista em mobilidade e professor catedrático no Instituto Superior Técnico não nega a utilidade de se criarem mais corredores BUS na cidade, mas reforça: “Tratem bem os corredores que já existem”.

A rede de corredores dedicados ao transporte público em Lisboa tem atualmente 75 quilómetros de extensão e o saldo, nos últimos anos, é até negativo. Em 2022, na Rua da Junqueira, em Belém, foram suprimidos 350 metros de uma das mais estruturantes vias BUS da cidade. Por ali circula a única carreira de elétricos articulados da cidade – a 15E – e que estreou novos veículos em 2023, bem como as carreiras de autocarro 727, 751 ou 714, servindo milhares de passageiros todos os dias.

No final de 2023, e questionada pela Mensagem, a Câmara Municipal de Lisboa afirmava encontrar-se em estudo a implementação de novos corredores BUS na cidade, nomeadamente na Avenida Engenheiro Duarte Pacheco, servindo os autocarros que entram na cidade a partir da A5. Este trabalho, que resulta da articulação entre Carris, CML e Transportes Metropolitanos de Lisboa (TML) não surtiu, desde então, efeitos práticos nas ruas do município, não tendo sido acrescentados novos troços à rede.

Segundo o especialista em mobilidade que também foi vereador com o pelouro dos transportes e mobilidade, entre 2009 e 2013, são vários os exemplos de corredores já existentes que não estão a contribuir para o aumento da velocidade comercial dos transportes públicos, porque lhes faltam alguns fatores para serem eficientes:

1. Prioridade aos autocarros nos semáforos

“Com o sistema de semáforos que temos, não conseguimos ter sequer dois semáforos consecutivos em que passamos com verde, mesmo quando estamos perante corredores BUS, como é o caso da Avenida da República. E, portanto, como os autocarros vão parando em todos os semáforos, dá-se uma quebra da velocidade”, explica Fernando Nunes da Silva.

Em Lisboa, a Câmara Municipal afirmava à Mensagem, em 2023, que sistemas de prioridade aos autocarros nos semáforos já foram alvo de testes nas avenidas da República e Fontes Pereira de Melo, não se encontrando estes atualmente em funcionamento. Nesse ano, a autarquia informava que um outro sistema estava “em cenário de projeto-piloto, enquadrado no projeto europeu Cooperative Streets”, na Avenida do Brasil, dando prioridade a veículos de transporte coletivo e de emergência. Na altura, o município anunciava que os resultados obtidos iriam “permitir o desenvolvimento e expansão deste sistema a outras zonas de Lisboa”.

Semáforo dedicado ao trânsito de transportes públicos, na Rua da Junqueira, em Belém. Foto: Inês Leote

Ao que tudo indica, a experiência prossegue. No Plano de Atividades e Orçamento para 2025, a Carris inscreve 2,6 milhões de euros para a “prioridade semafórica”, dando continuidade ao projeto Cooperative Streets, entre outros investimentos de dados e informática.

A Mensagem questionou a Carris e a CML para uma atualização do estado deste projeto, não tendo recebido resposta até ao momento da publicação.

2. Segregação física do resto do trânsito

“Alguns corredores não são respeitados. Em toda a zona desde a Avenida 24 de julho até Belém, o elétrico tem uma velocidade inferior à do autocarro. É uma coisa que deve ser um recorde internacional. Por uma razão extremamente simples: o elétrico não se desvia quando há um obstáculo e o autocarro pode desviar-se”, explica o especialista.

Neste troço do corredor BUS da Avenida 24 de Julho foram instalados, em março, balizadores para impedir a utilização deste canal por veículos particulares. Foto: Frederico Raposo

“Veja-se o caso da Fontes Pereira de Melo, em que o corredor BUS é sistematicamente atravessado por viragens à direita por parte dos automóveis. Aí é muito difícil que o corredor permita uma circulação com maior velocidade por parte dos autocarros, porque a quantidade enorme de viragens está sistematicamente a obrigar a que o corredor seja reduzido.”

A solução para o aumento da velocidade comercial dos transportes públicos em Lisboa será não só o aumento dos corredores BUS, mas também dar prioridade aos autocarros nos semáforos e a segregação física dos corredores BUS face ao resto do trânsito, que terminará com a utilização destas vias por parte dos carros.

Uma rede estagnada?

Nas Grandes Opções do Plano da Câmara Municipal de Lisboa, o atual executivo defende:

  • Constituição de uma Rede Municipal Hierarquizada de Corredores dedicados ao Transporte Público, consolidando as soluções necessárias para a expansão e requalificação da rede de corredores BUS e a criação de canais segregados de Transporte Coletivo em Sítio Próprio.
  • Implementar corredores de prioridade semafórica a veículos de emergência e transporte público coletivo, definindo como artéria piloto a Av. Brasil, alargando o conceito à rede de corredores BUS da cidade.

Apesar de promessas dos dois últimos executivos na Câmara Municipal de Lisboa, a rede de corredores BUS de Lisboa está estagnada.

Em 2018, a Câmara Municipal de Lisboa anunciava a intenção de criar sete corredores BUS de elevado desempenho, alcançando uma rede municipal com cerca de 108 quilómetros.

Nestes corredores, haveria lugar a uma “segregação especial de vias, redução de obstáculos” e à instalação de dispositivos de comunicação entre veículos de transporte público e semáforos, assegurando prioridade nas interseções. Ao todo, seriam acrescentados à rede de corredores BUS da cidade mais de 30 quilómetros, através da implementação de vias dedicadas e contínuas que assegurariam o aumento da velocidade comercial da Carris para valores “superiores a 20 quilómetros por hora”.

A expectativa embateu, contudo, na realidade.

Foram implementados, no decorrer do anterior mandato, alguns novos troços BUS com medidas de segregação física – como no caso da Avenida Duque de Ávila, que em 2020 viu uma via convertida em corredor BUS, mas os sete corredores de elevado desempenho anunciados não foram, até hoje, concretizados.

Um dos corredores previstos permitiria a concretização de uma via exclusiva para o transporte coletivo entre a Avenida de Ceuta, em Alcântara, e o Areeiro, passando pela Avenida de Berna e pela Avenida João XXI. Em 2023, a CML confirmava não haver ainda “horizonte temporal definido” para a concretização deste corredor.
Corredor BUS de alto desempenho proposto pela CML em 2021, criando um corredor ininterrupto dedicado ao transporte público entre a Avenida de Ceuta e a Avenida João XXI, assegurando a ligação rápida entre Alcântara e o Areeiro. Fonte: CML

Já este ano, um troço de corredor BUS da Avenida 24 de Julho também recebeu melhorias durante o mês de março, através da instalação de balizadores.

No seu Plano de Atividades e Orçamento para 2025, a Carris assume o objetivo de melhorar a velocidade comercial dos seus autocarros e elétricos, considerando esta melhoria uma “variável essencial na opção pelo transporte público”.

Como uma das formas de alcançar este objetivo, a empresa municipalizada aponta para a revisão em curso do Plano de Rede. Adicionalmente, sublinha o papel “crucial” da continuidade da articulação “de ações políticas e conjuntas com a CML, bem como outras entidades municipais ou metropolitanas, no sentido de agilizar as condições de circulação dos transportes públicos à superfície”.

Mais 174 quilómetros de vias BUS por 520 mil euros? A proposta do Livre em Lisboa

No final de abril, surgiu uma proposta de expansão da rede de corredores BUS, sugerindo passar dos atuais 75 quilómetros para 249 quilómetros de rede – um acréscimo de 174 quilómetros.
Tudo, garante a vereação do partido na CML, por 520 mil euros – um custo “inferior à aquisição de dois autocarros standard a gás” e correspondendo “a menos de um décimo do gasto com horas suplementares pagas pela Carris em 2024 – 5,9 milhões de euros”.

A proposta foi apresentada na reunião de Câmara de 23 de abril, pelo vereador do Livre em regime de substituição na Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Teixeira, e nasceu da sobreposição da atual rede de corredores BUS à rede da Carris à rede viária da cidade.

O partido sugere ainda que a implementação desta expansão, em modo “pop-up”, possa ser feita de forma “progressiva” e por trabalhadores da CML, através das Brigadas LX.

Segundo a proposta, a intervenção deve iniciar-se por um conjunto de ruas, identificadas, onde circulam mais de 30 autocarros por hora – entre as quais está a Rua Morais Soares, a Avenida do Brasil, Estrada da Luz, Rua Alexandre Herculano, Avenida Álvares Cabral e Avenida Infante Santo.

Para chegar à proposta final, o gabinete da vereação recorreu aos dados da estrutura da rede viária e da rede Carris. Foi cruzada a informação de ruas e avenidas com mais de duas vias por sentido com a atual rede da Carris sem corredor BUS. O resultado é uma rede com mais do triplo da extensão atual, passando dos atuais 7% da rede viária da cidade com corredores BUS para 23% – e 33% da rede da Carris passaria a circular em corredores dedicados ao transporte público.

Proposta do Livre para a expansão em 174 quilómetros da atual rede de corredores BUS. Fonte: Livre

A concretizar-se, a expansão da rede de corredores BUS permitiria que carreiras como o 750, que percorre toda a cidade, de Algés à Estação Oriente, passasse de 19% do percurso em corredor BUS para 72% do percurso em canal dedicado – um ganho de 26 km. Segundo a análise do Livre, que considerou os horários previstos e os reais – medidos através da posição registada por GPS – a carreira 750 chega a registar atrasos superiores a 90 minutos durante a hora de ponta da tarde, entre as 17 horas e as 20 horas.

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